sábado, 21 de janeiro de 2017

Os prejuízos do segredo familiar em nome do amor


Por: Marcia Maria dos Anjos Azevedo
Profa.Dra.do Curso de Psicologia da UFF – Rio das Ostras
Membro Associado da Sociedade de Psicanalise da Cidade do Rio de Janeiro –SPCRJ
Membro da Associação Internacional de Psicanalise de Casal e Familia - AIPCF

 A base intersubjetiva da vida psíquica individual é Sustentada por alianças, contratos e pactos, inconscientes estabelecidos na malha psíquica familiar. O fato do sujeito se constituir em um grupo e se tornar elo de uma corrente geracional, delimita a forma de processamento intra e intersubjetivo a partir dos primeiros “encontros”. Sendo assim pode-se apontar que um traumatismo vivido por uma determinada geração adquire força suficiente para provocar um entrave na capacidade representacional, no processo de integração e de transformação no processamento psíquico dos seus membros em gerações subsequentes. Pois a genealogia de uma família é construída a partir da continuidade da corrente de gerações, sendo a hereditariedade psíquica mantida através das ligações afetivas e inconscientes estabelecidas entre seus membros, construída em um sistema de crenças em torno das quais o sujeito vai se organizar. Em função dessa ligação, o inconsciente de cada sujeito leva a marca, na sua estrutura e nos seus conteúdos, do inconsciente de um outro, e mais precisamente, de mais de um outro (KAËS, 1998:14). Essa investigação suscita ainda, a discussão a respeito de um paradoxo, uma vez que o adoecimento poderia ser pensado, como uma forma de
pertencimento e uma tentativa de separação. Isso ocorre no sentido de uma tentativa de abertura de um espaço entre dois corpos, ou entre a atualidade e o passado. O que poderia ser traduzido, ainda, em última instância, como uma forma de romper com o silêncio imposto pelo segredo familiar.
A existência de determinados segredos familiares podem vir a prejudicar o processo de simbolização, de introjeção e a identificação dos sujeitos na sucessão das gerações, na medida em que impossibilita a transmissão e a consequente integração no psiquismo de algo que era dooutro, além de não favorecer ao sujeito encontrar recursos para se defender efetivamente daquiloque lhe é traumático. Assim, o vazio de significação e de sentido, provocado pela imposição do segredo, ressalta a importância da linguagem nesse processo, que é marcado além da falta clareza do discurso familiar, sua impossibilidade de tradução, o que marcaria a existência de uma transmissão negativa ou uma não transmissão.
A noção de transmissão apresentada aqui, segundo Kaes (1998), refere-se a realidade psíquica que se transporta, desloca-se ou transfere-se de um indivíduo a outro, entre eles ou através deles, ou nos vínculos de um conjunto, ainda que a matéria psíquica transmitida se transforme ou permaneça idêntica nesta passagem. Kaës acentua que a marca do negativo aparece naquilo que não se contém, não se retém, não se representa, aquilo do que não se lembra, tal como a falta, a doença, a vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos e, ainda, enlutados.
Cabe dizer, que a transmissão psíquica depende, essencialmente, de três fatores que são o conteúdo das mensagens, a capacidade tradutiva e o veículo utilizado. Em primeira instância, “o conteúdo transmitido é revestido por uma linguagem inconsciente, cuja transferência seria feita do inconsciente de um ao inconsciente do outro, e a característica da mensagem em questão é da ordem de um enigma”. Em função do caráter incipiente de seu aparelho psíquico, a criança, em sua condição de passividade originária, é penetrada por diversos conteúdos que ficam sem a possibilidade de tradução, principalmente aqueles relacionados aos aspectos enigmáticos da sexualidade. Uma vez que esses ultrapassam, a possibilidade de assimilação e produzem certos entraves em sua capacidade representativa. É a condição de “intraduzível” que impede a ação do recalcamento e, consequentemente, da possibilidade de substituição ou deslocamento.
Na clínica observa-se que quando o sujeito adoecido somaticamente semelhante ao seu grupo de pertencimento primario se apresenta com a integridade física e psíquica ameaçadas, em função da fragilidade em seu filtro protetor. Essa fronteira entre interno-externo, regulador do excesso de excitação proveniente dessa transmissão, ao ser o responsável por filtrar as excitações, contribui para a produção de sentido. Segundo Winnicott o papel de filtro protetor é desempenhado inicialmente pela mãe. Porém, quando essa falha neste papel, são constituídas fendas na fronteira, que repetidas no desenvolvimento se acumulam de forma silenciosa e invisível. Em relação a isso o analista deverá estar atento à necessidade de lançar mão de sua capacidade de sentir, para, então, poder entrar em contato com aspectos muito primitivos, essencialmente, psicossomáticos de seu paciente.
Se a constituição psíquica da criança vai depender da capacidade interpretativa da mãe com todos os seus recursos, uma vez que estes estarão sendo impostos à criança podem favorecer a uma vivência traumática na criança, na medida em que revelam uma confusão dessa ordem na própria mãe. Pois, a mãe, ou quem se ocupe desta função, participa da formação do psiquismo do filho com seu corpo, seus atributos, sua história e seu funcionamento psíquico oferecendo-se como uma “prótese” que funciona a partir de um duplo apoio que é nutriz e libidinal. Portanto, operações falhas do psiquismo daquele que apóia o funcionamento psíquico de outrem, compromete a construção de uma rede de ligações simbólicas. Além disso, os conteúdos veiculados através do contato corporal entre mãe-bebê, que não sejam passíveis de tradução, constituem uma sombra, o que favoreceria a um processo de repetição e de somatização.
Sob essa ótica, voltamos ao paradoxo entre pertencer a uma determinada linhagem ao preço de seu desaparecimento como sujeito e a possibilidade de e separar à guisa de uma possibilidade de exclusão. Vejamos, então, como o corpo participa desse processo....

O corpo como veiculo da ligação
Entre o corpo, que pode ser visto como uma fronteira entre o Eu e o Outro, e a história em que está inserido é que se estabelece a dimensão espaço-temporal. É a via por onde transitam os não ditos e onde se aloja a cripta familiar. Relação em que se vinculam o tempo, como o registro em que esta se inscreve, e o contexto afetivo, social, histórico e cultural no qual a existência do sujeito ganha sentido. Pode-se atribuir, ainda, ao contexto histórico duas dimensões. A primeira delas é a da história contada em que são trazidos elementos que servirão de referências identificatórias constituintes dos ideais do sujeito, que organizam sua mitologia individual. A segunda é a história sentida que se passa sem que o sujeito perceba que está tomado por ela ou identificado por ela. Em ambas, o “corpo”, com sua sensorialidade, será o veículo receptor de diversas informações verbais ou não, cuja codificação ou decodificação possível será realizada pelo habitante deste corpo, conhecido como o “Eu”. Contudo, diante da ausência de palavra para efetivar esta codificação, e sua posterior interpretação, há a manifestação de recursos primitivos, suscitados e disponibilizados pelo corpo, na medida em que é o espaço intermediário onde o Eu e a história interagem, ou seja, onde se intrincam. Fato que faz pensar na importância do Outro na construção do psiquismo e nas suas formas de adoecer.
A experiencia clínica demonstra que é o Eu quem cria a possibilidade de comunicação com o outro, constrói o pensamento no acesso a diferentes memórias, e com isso, busca construir sentido para poder compreender o que lhe cerca. Ao mesmo tempo em que o corpo é uma fronteira porosa e superfície do aparelho psíquico e em sua sensorialidade apresenta-se como veículo receptor das sensações traduzíveis ou não.
É assim que o fantasma se estabelece quando relacionado ao que se passa em silêncio nas histórias que não puderam ser contadas de situações recusadas pela censura familiar, tais como, morte, incesto, suicídio, violência e outras. São essas recusas que assombram a descendência sob a forma de sintomas, somatizações, delírios e fobias, criados por um misterioso processo de comunicação inconsciente. Portanto, o que faz sombra na transmissão é um objeto que está em outro lugar, que deixou uma impressão, mas não foi representado.
A capacidade de criar representações mentais, de simbolizar, é que possibilita ao sujeito libertar-se do espaço e do tempo presentes e depende de três modos de criação representacional. O primeiro deles é sobre o registro corporal que se utiliza de recursos sensorial, emocional e motor; o segundo é sob o registro de imagens que se utiliza do modo visual- sensorial e do imaginado e, por fim, sob o modo verbal que também depende do aspecto sensorial. Apesar de estarem dispostos separadamente observa-se que os três registros dependem do aspecto sensorial, inclusive o imaginado que depende não só dos registros que o sujeito possui na memória, mas, também, da possibilidade de quem lhe relata algo, de criar imagens através de sua capacidade de figurar e de contextualizar a situação. Assim, a capacidade de figurar e de pensar associados a sensorialidade criam uma base que favoreça a possibilidade de fantasiar, que se apresenta como um dos recursos fundamentais para o sentimento de liberdade e autonomia do sujeito humano.
Em última instância, vimos mais uma vez que é o outro, em sua condição de alteridade, que estabelece uma diferença necessária à constituição psíquica, mas, paradoxalmente, é, também, a alteridade radical enquistada que aprisiona e aliena.
Uma citação de Goethe nos auxilia a sublinhar a necessidade do indivíduo singular de adquirir ativamente o que lhe é transmitido pela via da hereditariedade psíquica, pois “aquilo que herdaste de teus pais conquista-o para fazê-lo teu”- . Sendo que a entonação afetiva possível vai ser dada pelo o conjunto de vozes que participa da construção da historia de cada um dos membros do grupo familiar. Contudo, nos casos em qu e os sujeitos foram prejudicados pelo segredo familiar suas sensações ficaram sem tradução, não havia o que ser evocado como cena construída, o que seria realizado a partir de fragmentos vindos das experiências vividas no romance familiar. Assim, sem inscrição, não há lembrança, nem resíduos afetivos disponíveis como reminiscências e nem a possibilidade de pô-la em palavras, o que impõe conseqüências interpessoais e transgeracionais no registro do não-dito.
Os segredos de família são estabelecidos geralmente em nome do amor, em nome da proteção de sofrimento. Uma vez que a dimensão do amor é narcísica, o ocultado versa sobre alguma ferida narcísica cujo luto não pode ser elaborado, sendo sobre filhos ilegítimos, doenças ou situações consideradas vergonhosas, que em geral são conscientes nos sujeitos que se revelam como guardiões do segredo. Portanto o que entra no processamento psíquico se integra nos processos constitutivos do eu e se transforma em processo de pensamento, que o sujeito poderá torná-lo seu e, se identificar com ele. Nessa complexa construção o que era da dimensão sensorial é que vai formar um espelho interno, a partir do funcionamento da prótese do outro, talvez melhor definido como seu duplo. 

Quando o corpo adoece em função do segredo
Vimos que os prejuízos simbólicos produzidos pelo segredo por sua condição de irrepresentável comprometem a constituição psíquica dos sujeitos em diversos aspectos. No entanto, quando é o corpo que adoece, há nessa concepção a reatualização de algo que constitui não só o seu presente, como, também, o seu passado.
Uma superposição do passado sobre o presente, na qual este não pode cumprir sua tarefa articuladora e transformadora e nem o futuro pode ser projetado como diferente, mas mantido no mesmo registro. Entende-se aqui que é no cruzamento entre o espaço e o tempo que corpo e história se integram.
A partir dessa ótica o corpo é utilizado na transmissão como o próprio objeto de ligação, mas em uma condição de desligamento, portanto, fonte e alvo na dinâmica pulsional. Esse aspecto contribui para que se possa dizer que a forma de adoecer exclusivamente pela via somática, não seria propriamente “um salto do psíquico no somático” como nas conversões, mas “um retorno do somático ao somático” e, por isso, encontra-se remetido a noção de um curto circuito. Observa-se que no processo de geração do Eu são integrados não só elementos, núcleos e traços oriundos da transmissão psíquica e discursiva, mas, também, vivências pessoais e familiares. Em grande parte, este processo dependerá do discurso do meio e não de uma só pessoa, de forma que seja possível para o psiquismo em construção delinear sua mitologia pessoal, a partir de suas fantasias inconscientes elaboradas em função do que foi vivido, visto, ouvido e sentido consciente ou inconscientemente.
Nesse processo de integração, juntamente com o discurso do meio, são acrescidos elementos tais como o olhar e o cuidado materno, com sua expressividade e sensorialidade, o afeto, que a companha o investimento libidinal oferecido pelo entorno, e os dramas ou romances vividos na história familiar.
Em se tratando de lutos familiares não elaborados e, por isso, recusados ao outro podemos nos remeter as concepções freudianas, sobre o fato do narcisismo dos filhos serconstituído pelo narcisismo dos pais há muito esquecido. Da mesma forma, em que o superego dos filhos é constituído a partir do desdobramento do superego dos pais, lembrando-nos que o outro do outro vai estar sempre implicado na formação psíquica do sujeito e é desta sombra que se forma o fantasma.
Nessa investigação o conceito de “cripta”, desenvolvido por N Abraham e Torok, é nuclear, cujo significado etimológico aponta para o escondido, o enterrado e o oculto, da mesma forma que o verbo “criptar” significa cifrar, operação simbólica ou semiótica que consiste em manipular um código secreto, o que jamais se pode fazer só, sem a ajuda de um outro.
Ao nos aproximarmos da essência dessa concepção podemos atribuir que o processo de adoecimento diante da existência de uma cripta transgeracional demonstra uma dificuldade no estabelecimento de fronteiras internas e externas, a partir da existência de vínculos marcadamente indiferenciados e ambivalentes, que são, ao mesmo tempo, “salvadores” e “destruidores”, repetindo-se um modelo especular e narcísico de relação. Assim, adoecer somaticamente mais que demonstrar a luta contra a angústia de castração e as interdições edipianas, revela o temor provocado pelos anseios fusionais e a sua luta contra a indiferenciação em relação ao outro, porque ”em lugar da ambivalência aparece a metáfora somática”.
Por vezes, esse mecanismo confirma a hipótese de que o que foi positivado, no funcionamento psíquico do paciente, era o que devia ter se mantido oculto e, por isso o analista vê-se enredado em um funcionamento envolvido em sombras que recaíram sobre o Eu do paciente.
O elemento fundamental de ligação pulsional está além da revelação do segredo, mas este processo deveria ser feito através da construção de ligações intermediárias e de uma linguagem carregada de sentido e de afeto.
A doença seria uma manifestação da sombra do objeto que não cessa de divagar na própria pessoa do sujeito, pois ao adoecer o que deveria manter-se escondido reapareceu como um conteúdo estranho e temido, vivido como se fosse parte de si próprio, no sentido de um duplo, mantido como um “corpo estranho interno”. Entretanto, como representante do outro e primeira alteridade, o corpo é transformado em alvo de uma força pulsional mortífera, no ataque ao seu duplo. O aspecto traumático da ausência de palavras para enunciar uma história de dor reativa o desamparo primordial em situações de ameaças de perda e de abandono, e torna a atuação e a repetição mecanismos constantemente observados. Além do fato de reagir com uma outra forma de violência, porém, desta vez, contra ele próprio.
Na clínica o analista encontra uma dificuldade em identificar os incorporados, na medidaem que não há linguagem para nomeá-los. Na medida em que não fazem o mesmo movimento que o sintoma neurótico e não apresentam uma formação substitutiva característica da dinâmica pulsional inconsciente. Entretanto, um indicativodo caráter estranho do objeto incorporado seria a somatização como marca da repetição, como atuação de algo que era do outro. Nesse sentido, esse adoecimento seria uma das formas de manifestação do vazio ou da sombra do outro que recai sobre o eu do sujeito. 
O adoecimento ocorre porque o corpo fronteira do processo de transmitir e a parte real da existência, espaço em que há uma confusão entre o dentro e o fora, o antes e o depois, é o local em que as palavras que foram enterradas vivas, as quais foram atuadas somaticamente. Esse corpo manifesta através de seus recursos, por mais primitivos que sejam, aquilo que não pode ser dito ou dramatizado. Nessa situação o Eu submergido imporá sua vulnerabilidade ao soma, a ser atacado por ser o outro estranho. Portanto, ao lhe faltar uma voz que o referencie como sujeito em uma determinada linhagem familiar, se mantém alienado no lugar do objeto morto.
Com isso, em função da vulnerabilidade causada pela falta de inscrições simbólicas, o corpo adoece, por que o que não se representa, se apresenta ou se atualiza. Essa questão traz de volta o paradoxo pertencimento-separação. Em última análise, para Abraham (1995:75) uma estrutura psíquica é formada não de um conjunto de coisas, mas de um conjunto de sentidos, e, desta forma, nos casos mais graves, a morte seria uma tentativa de inscrição possível.
No pensamento de Abraham e Torok a situação traumática é transformada em segredo para tentar “proteger” a vida psíquica dos envolvidos. A partir deste é que se constrói a cripta com seus muros, no vazio de significação que o segredo carrega, na ordem do negativo, cuja tendência é repetir. Nesse sentido o negativo é o único positivo que o sujeito possui.

A quem o guardião do segredo tenta proteger em nome do amor?
O segredo familiar é guardado por uma figura significativa para o sujeito, que se torna uma testemunha viva de sua história. Além disso, tem valor absoluto e, apesar de não poder ser revelado, em algum lugar é sabido. O segredo, que necessitaria ser revelado para que sua ação pudesse ganhar sentido, está vinculado à dinâmica psíquica do portador. Assim o que não se teve acesso através da linguagem, está além do verbalizável e impedido de ser elaborado pela via da fantasia. Logo, os elementos psíquicos desligados, rechaçados, são capazes de adquirir uma potência de destruição e de violência, na medida em que não são transformados no metabolismo do processo psíquico grupal ou na malha psíquica grupal.
Portanto, aquilo que é indizível torna-se impensável. Desta forma, a expressão da
angústia, sem nome, passa primeiro por estados do corpo, pela imagem do corpo fragmentada, e, posteriormente, por cenários fantasmáticos, com diversos personagens e, enfim, pelas palavras.
A característica do guardião do segredo na transmissão transgeracional é a de fechar todos os sentimentos e lembranças em si e recusá-los ao outro. Nesse contexto, o sujeito herdeiro do silêncio torna-se portador da cripta, seus processos simbólicos falham e o processo de diferenciação fica comprometido. E, o que não se pode ter acesso direto através da linguagem aparece como uma sombra. Pode-se exemplificar a partir de diversas situações psicopatológicas tais como, em quadros melancólicos, depressivos, alcoolismo, toxicomanias e doenças psicossomáticas (ROUCHY, 2000: 46).
Nesses casos em que o sujeito adoece gravemente em função do rompimento de seu frágil alinhavo narcísico, não há do que se separar, não se pode projetar, arrancar ou mandar embora algo que é da ordem de uma sombra. E, é esta que en
contra-se na fronteira do corpo, que sofrerá o ataque pulsional, chamado aqui, de auto-ataque, em um curto circuito pulsional.

Sobre o processo de analise nesses casos
Na medida em que o processo de análise vai devolvera palavra onde havia silêncio, restitui o segredo (intrapsíquico) enterrado, revela aspectos do funcionamento psíquico, além de poder adquirir a categoria de objeto. Visa, também, restabelecer para o sujeito a função de um filtro protetor que deveria ter estabelecido pelo meio, pela figuras parentais mais primitivas. E o contexto analítico funcionará como suporte, na reabilitação da vitalidade, da capacidade de transformação do sujeito, que ocorre a partir da possibilidade de haver uma reconfiguração do seu funcionamento psíquico e somático. Isso se tornaria viável a partir da reconstrução de uma história na qual ele possa criar novos referenciais e se encontrar com seus próprios conteúdos, além de construir uma mitologia que lhe seja própria e se identificar com ela.
Uma apreciação sobre o manejo clínico dos aspectos crípticos no adoecimento somático, contribui para o entendimento a respeito da importância do olhar, da escuta e do funcionamento do analista, como elemento fundamental na construção da possibilidade de reconfiguração da dinâmica psicossomática e da capacidade representacional do paciente. Guillaumin aponta que o analista participa do processo analítico com o seu aparelho de pensar psicanaliticamente, que remete a duas dimensões fundamentais inerentes ao processo analítico, que são a alteridade e a temporalidade.
A primeira pode ser percebida como o encontro com a diferença, uma vez que, o sujeito humano é entendido como um ser pulsional que se constitui a partir do encontro com o outro, sendo esta a marca primordial do humano.
Concomitantemente, a temporalidade apresenta-se emreferência à noção de continuidade da vida. Entretanto, só quando existe alteridade é que pode-se buscar evitar a confusão entre tempo e espaço. Portanto, se é no cruzamento dessas duas dimensões que se delineia o funcionamento e o impasse psíquico, gerador dos diversos sintomas é, também, a partir daí que se reorganiza o espaço psíquico.
Essa reconstrução implica a dimensão espaço temporal que pode ser viabilizada a partir do desenvolvimento de um espaço potencial entre a dupla paciente-analista, no qual uma nova dimensão é estabelecida, de modo a situar o sujeito, na sua própria história e no seu próprio tempo. Dessa forma é que a continuidade do processo analítico possibilita a reconstrução do tempo psíquico. Inclusive, sobre essa questão, Freud recorreu a Kant para dizer que tempo e espaço são formas necessárias de pensamento (1921:43), e que é preciso “reconhecer que aquilo que parece ser realidade é, na verdade, apenas reflexo de um passado esquecido”. Portanto, é preciso lembrar que é na continuidade do tempo que a história do sujeito é construída e reconstruida. O que aponta para o fato de que quando a capacidade de pensar apresenta-se entravada, a temporalidade encontra-se distorcida. 
E, associado a essa relação a reorientação do tempo psíquico contribui para a ampliação da capacidade de resposta afetiva do sujeito. Nesse sentido, a posição face a face é indicada em detrimento do divã, na medida em que esta favorece a reconstituição de aspectos sensoriais primitivos do funcionamento psíquico do paciente. E por fim, o processo de con-figuração que se desdobra entre paciente e analista, a partir de uma possível construção ou reconstrução da função simbólica, dentro de um movimento que associa a dimensão de alteridade e temporalidade e favorece o surgimento de representações significativas, não mais ter que responder às angústias inomináveis, através de uma desorganização psicossomática. Esse processo corresponde ao fato de poder haver uma reconfiguração do funcionamento psíquico, com uma integração entre os núcleos que compõem o seu Eu e a ampliação de seu espectro de respostas psíquicas, além de suas possibilidades relacionadas aos diversos campos da sua existência.

Conclusão
O ser humano se desenvolve na ligação, interação e na comunicação com o outro e, nesta, o corpo é uma fronteira e um duplo limite. Ao mesmo tempo, o elo concreto da vinculação familiar e veículo da ligação somatopsíquica e da ligação com o outro.
Pode-se dizer ainda que está em poder do eu, de seu trabalho de investigação, de
conhecimento, de previsão, inventar respostas frente às mudanças do “meio” psíquico e físico que o envolve, mas que não está em seu poder inventar novas defesas, se certas condições (internas ou externas), necessárias para o seu funcionamento lhe faltarem.
Em síntese, é a possibilidade dos rearranjos que envolvem a dimensão temporal, corporal e histórica ao longo do processo de análise é que demonstra o fato de que o analista vai reeditar a função de prótese psiquica. Isso porque o adoecimento implica a relação com o objeto que se oferece como prótese na constituição psíquica. A partir daí, cria-se condições psíquicas mínimas para que o sujeito possa romper com a repetição à qual encontrava-se alienado, para abrir, então,novas trilhas possíveis de resposta psíquica.

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